Feliz 2017 a todos!
Falaremos, hoje, sobre a assim chamada “desapropriação confiscatória”, prevista no art. 243 da Constituição. Não é um assunto dos mais relevantes, mas o motivo da minha escolha, como vocês verão, foi uma decisão bem recente do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, a qual, por ter sido proferida na sistemática da repercussão geral, deve ser cobrada com alguma intensidade nos próximos concursos públicos.
Vejamos os pontos essenciais sobre essa modalidade de desapropriação – a única existente no Brasil em que não há indenização alguma ao expropriado.
A “desapropriação confiscatória” tem por fim a expropriação, sem indenização, de propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo.
Ela está prevista no art. 243 da Carta Política vigente, abaixo reproduzido (grifei):
“Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5.º.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.”
A redação atual do art. 243 foi estabelecida pela Emenda Constitucional 81/2014. No texto originário da Carta de 1988, só era prevista a desapropriação confiscatória para a hipótese de culturas ilegais de plantas psicotrópicas. E não havia exigência expressa de regulamentação pelo legislador ordinário, como hoje há – “na forma da lei”.
Na minha opinião, muito embora a redação dada pela EC 81/2014 ao art. 243 esteja ambígua, a exigência de regulamentação legal – “na forma da lei” – aplica-se tanto ao caso das culturas ilícitas de plantas psicoativas quanto ao da exploração de trabalho escravo. Significa dizer que o preceito constitucional, atualmente, enquadra-se na categoria das normas constitucionais de eficácia limitada.
De todo modo, esse fato não tem relevância prática para a hipótese de expropriação decorrente de culturas ilegais de plantas entorpecentes, porque, há muito, ela está regulamentada pela Lei 8.257/1991 (a qual, por sua vez, é regulamentada pelo Decreto 577/1992).
Mas não existe regulamentação legal para a hipótese de desapropriação confiscatória motivada por exploração de trabalho escravo. Enquanto não for editada a lei que estabeleça tal regulamentação, expressamente exigida pelo texto constitucional, não poderão ocorrer, efetivamente, expropriações sob esse específico fundamento. Exatamente por essa razão, não existe jurisprudência alguma sobre a matéria.
Diferentemente, há duas orientações jurisprudenciais importantes do Supremo Tribunal Federal relativas à desapropriação confiscatória motivada pelo cultivo ilícito de espécies entorpecentes.
A primeira delas, de março de 2009, é draconiana: a desapropriação deve recair sobre a totalidade da área do imóvel, seja qual for a sua dimensão, mesmo que a cultura ilegal ocupe apenas uma pequena fração da superfície dele (RE 543.974/MG). Em poucas palavras: a expropriação decorrente do cultivo ilícito de plantas psicoativas a que se refere o art. 243 da Constituição deve abranger toda a propriedade, e não apenas a área efetivamente cultivada.
Assim, mesmo que seja encontrada, por exemplo, uma plantação de maconha em poucos metros quadrados de uma grande propriedade rural, a totalidade da área do imóvel deve ser objeto da desapropriação confiscatória, sem que se possa, nesse caso, alegar ofensa ao princípio da proporcionalidade.
No julgamento que deu origem à segunda posição jurisprudencial acima aludida, ocorrido em dezembro de 2016, nossa Corte Constitucional atenuou um pouquinho o rigor com que trata essa espécie de desapropriação. Com efeito, deixou-se assente, nessa oportunidade, com repercussão geral, que o proprietário da gleba em que sejam plantadas espécies psicotrópicas efetivamente estará sujeito, como regra, à desapropriação confiscatória ora em exame, mas, caso ele consiga provar que não teve qualquer culpa – nem no seu dever de vigiar o uso que é feito de sua propriedade (culpa in vigilando), nem na escolha das pessoas que consentiu que possuíssem ou utilizassem o seu imóvel (culpa in eligendo) –, essa expropriação poderá ser afastada (RE 635.336/PE).
A responsabilidade do proprietário, portanto, não é do tipo objetiva, mas também não é uma responsabilidade subjetiva comum, pois milita contra ele uma presunção relativa de culpa. É ônus do proprietário, a fim de evitar a expropriação confiscatória, provar que nenhuma culpa lhe pode ser imputada.
Nesse julgado, restou fixada a seguinte tese de repercussão geral:
“A expropriação prevista no art. 243 da Constituição Federal pode ser afastada, desde que o proprietário comprove que não incorreu em culpa, ainda que in vigilando ou in eligendo.”
O Supremo Tribunal Federal deixou ainda consignado, na decisão ora em apreço, que, na hipótese de propriedade havida em condomínio na qual se encontre plantação ilegal de entorpecentes, não será afastada a desapropriação confiscatória mesmo que um ou alguns dos condôminos provem que não incorreram em culpa de qualquer espécie. As reparações pelas perdas e danos oriundos da desapropriação, ou a ela relacionados, deverão ser buscadas diretamente pelos condôminos prejudicados, mediante a utilização, em face dos coproprietários culpados, das vias judiciais cabíveis. Dito de outro modo, a responsabilidade de apenas um dos condôminos é suficiente para ensejar a desapropriação de todo o imóvel e as consequentes relações entre os coproprietários devem ser acertadas diretamente por eles mesmos, em ações próprias.
É isso.
Antes de encerrar, faço um alerta veemente: tenho forte convicção de que esses entendimentos do STF não podem ser estendidos automaticamente à hipótese de desapropriação confiscatória decorrente de exploração de trabalho escravo, introduzida pela EC 81/2014.
Até a próxima!